Assim têm alguns vindo a dividir os pronomes pessoais quando a conversa fala de passos refugiados.
Não acredito em pronomes pessoais quando o que se conjuga é o tempo do Humano e o verbo “viver”.
“Estamos no mesmo tempo de Humanidade”, disse por estes dias um amigo. E, no mesmo tempo da Humanidade não há - não pode haver - “Eles” e “Nós”.
Existimos. Co-existimos neste tempo ao mesmo tempo.
Diferentes nas diferenças habituais, mas com muitas mais semelhanças do que coisas que nos façam espreitar por cantos de olhos desconfiados.
Estive, há menos de um mês, a aprender isto em primeira mão com os vários passos em transição que fui procurar, primeiro num campo de refugiados na Macedónia e depois em campos de acolhimento em Berlim. 9 dias em que fui ver o que era isso do “Eles” e em que vim com tudo conjugado num indubitável “Nós”, que nos inclui a todos. Narrei o que vi aqui (www.stepsintransition.worpress.com) e resumo uma parte neste texto.
Durante 9 dias comi sandes ou laranjas enquanto conversava, no meio de confusão, com gente que me contava como era a cidade ou vila de onde vinha, e ouvia como era a minha. Falámos dos cafés preferidos, dos almoços de família, das coisas que estudámos, dos parques por onde andámos. Nenhuma diferença maior do que aquela que encontro entre amigos de outros lugares do mundo. Entre as nossas casas, escolas e cafés há só um abismo: nas suas caem bombas que estilhaçam janelas, paredes, familiares e esperanças de futuro. Na minha e nas que eu conheço de perto, não.
Nas “nossas” vidas “nós” não fazemos filas durante horas para receber água potável e alguma comida, nem precisamos de despedir-nos das pessoas com quem vivemos de cada vez que saímos de casa, não vá ser que não voltemos. Nas “deles” sim.
Esta foi a grande diferença que encontrei nas tantas conversas que tive nas tardes com sol, nas noites com frio. Histórias iguais às minhas histórias, com cenários que se diferenciam pelos sons de estilhaços e pelo pó de casas destruídas.
Durante dias parei os olhos nestes passos em transição; atenta aos detalhes no meio do caos de um campo de refugiados, entre pessoas que chegavam e partiam aos milhares, entre sacos e crianças a debaterem-se pelo pouco espaço das mãos, entre os olhares exaustos de quem traz tudo o que tem no que o corpo pode carregar.
E eis alguns exemplos que vi, no meio desse caos, e sobressaindo dele:
Nesses dias vi falta de privacidade, falta de comida, falta de agasalho, falta de descanso, falta de força, mas não vi falta de exemplos de igualdade de género, de esmero, de cuidado, de delicadeza, de altruísmo, de solidariedade, de cooperação.
Abundam exemplos inspiradores, à vista de qualquer um que veja de perto esta situação e são muitos os exemplos que mostram que as guerras não bombardeiam os valores, a integridade e a dignidade.
Tudo o que vi, trouxe reforçada a ausência de pronomes pessoais que nos separam. Vi-me próxima e parecida, vi-nos parte de algo maior e confirmei uma certeza: os tempos de guerra estão a aproximar-nos e a dar-nos a oportunidade de aprender juntos sobre a beleza da Humanidade.
Os passos em transição trazem mais encaixes e parecenças do que fricção e estranheza. Da forma como soubermos acolher estes passos dependerá a conjugação da Humanidade numa única primeira pessoa do plural.
Texto publicado originalmente aqui: http://www.fenther.net/cronicas/ea10/ea10.html